E dormi. Dormi, dormi e dormi. Dormi tanto que não sei por quanto tempo foi. Dormi tantas horas que nem percebi quantos dias se tinham passado. Sem me aperceber, quando abri os olhos o Verão já tinha tomado conta dos lugares. E a sua expressão era mais forte que nunca. Acordei com o corpo e os lençóis encharcados em suor. A casa, fosse ela qual fosse, estava silenciosa. A noite caía. Final do dia, início da outra metade. É espantoso ver pessoas a chorar pelo final de algo: este fim apenas representa o começo de outra coisa. Como por exemplo, quando acaba o açúcar, isso apenas significa que começou a existir a escassez de açúcar. Quem diz o açúcar poderia dizer o alcool ou as drogas. Da mesma forma, a partida, a despedida é apenas o encontro noutro lugar. Se eu me despeço desta casa, vou chegar a um outro lugar. São apenas dois lados da mesma moeda. E é sempre assim com tudo. Quero dizer, com tudo menos com a morte.
A casa continua silenciosa. A lua já subiu no céu que escureceu entretanto. Lua cheia... Há tanto tempo que não a via. Isto significa que devo ter estado a dormir durante mais de um mês. Tantas coisas que podem acontecer durante um mês. Crianças nascem e morrem. Mães fogem dos maridos que lhes batem. Mulheres morrem nos braços de maridos que lhes batem. Criam-se cidades. Descobrem-se curas para as doenças do mundo. A água torna-se cada vez mais escassa. Guerras começam por causa disso e guerras começam. Países vão à falência. Uniões são feitas e desfeitas. Flores crescem nos campos. Flores apodrecem pelo calor e pela mesquinhez (e pela falta de água, este foi o principal motivo para começar a guerra).
Não sei que digo. Fui um corpo morto, porque um corpo adormecido é um corpo morto com a única diferença de respirar e ter o coração a bater. Fui um corpo morto. O mundo poderia ter acabado e eu não saberia de nada. Eu seria o mesmo a dormir nesta cama. O silêncio lá fora diminui. Começam a ouvir-se ruídos. Ruídos que não sei identificar. Talvez o meu cérebro se tenha esquecido de como se pensa. Ou tenha apagado todo o registo de ruídos dos seus ficheiros e agora eu não os consiga identificar. Será que quando alguém falar para mim eu vou conseguir decifrar a sua mensagem? Ou vou ter que aprender tudo desde o começo outra vez? Os ruídos aumentam. Afinal ainda os consigo identificar. São passos no chão de madeira. Não sei que casa é esta. Num momento o pânico apodera-se de mim. Não sei onde estou nem o que estou a fazer aqui. Não sei quem me trouxe ou como vim aqui parar. Não sei porque estou aqui. Ouço os passos a aproximarem-se. Sinto-me louco. Sinto-me preso. Num momento contemplo a janela e pondero a hipótese de escapar por aí. Terceiro andar. Não arrisco. Os passos aproximam-se. Ouço-os cada vez mais perto. Talvez devesse voltar para a cama e fingir que continuo a dormir (ou continuar mesmo, para sempre). Não reajo. Continuo de pé, perto da porta, hesitante sem saber o que fazer. A divisão não tem local onde me possa esconder... Estou perdido. Não sei o que vem aí. Os passos estão cada vez mais próximos. A porta vai abrir. Vejo a maçaneta a rodar devagar. Alguém abre a porta. Tenho medo mas não sei de quê. A porta abre. Do outro lado está uma velhota com um ar simpático a sorrir para mim. Diz ainda bem que acordei, já estava na hora. Não sei quem é mas vem à minha memória a imagem desta mesma mulher em qualquer momento da minha vida. Ou talvez uma memória de antes da vida.